After You

Rita de Sá

 

 

Aproximação e fuga

 

 

O pintor Albrecht Durer realizou a famosa aguarela “Asa de rola” por volta do ano 1500. O que se pode ver no Museu Albertina, em Viena, é literalmente o membro de um pássaro profusamente colorido que cabe com muita dificuldade nas convenções da natureza morta de então. Tratando-se, muito provavelmente, de um estudo enquadrável no seu persistente interesse no desenho e pintura de pássaros e outros animais, a verdade é que esta composição desperta um interesse desproporcionado em relação ao conjunto da sua obra, sobretudo ao olhar contemporâneo que a alcandorou a ícone. Podemos conjeturar que tal se prende com o facto de se tratar de uma representação parcial de um corpo, mas paradoxalmente acabada, fechada na sua condição de fragmento e aberta muito para além da sua vocação de representação.

Esta consciência de uma sobreposição entre a vocação representacional da pintura e um mais além, uma razão outra para prosseguir pintando, foi se tornando clara quando a modernidade tecnológica permitiu outros meios de fixação do visível (como a fotografia ou o filme) e os pintores puderam trabalhar sem um referente óbvio entre as aparências do real. Em suma, mostrava-se que a pintura podia representar, mas não tinha necessariamente de o fazer. Dissociando-a dessa vocação, artistas como Kandinsky, Malevitch, Mondrian, Albers ou Rothko, pretendiam uma libertação ontológica da pintura, que a   disfuncionalizasse, reduzindo-a às suas estruturas mais constitutivas, ao núcleo essencial da mancha, da linha e da cor. Completado que está o círculo histórico de emancipação da pintura da sua mais poderosa vocação social, a relação desta arte com o mundo foi-se desmultiplicando em inúmeros discursos, contaminados por outros dispositivos visuais e pelas transformações introduzidas pela produção e circulação massificada das imagens.

As obsessivas pinturas de Rita de Sá fazem-nos refletir sobre o estado dessa relação na pintura contemporânea na medida em que é difícil de definir se se apresentam como representações ou se podemos colocá-las simplesmente no território da abstração. E isso prende-se com uma das suas características fundamentais: mais do que representar alguma coisa, elas parecem ser o resultado de um movimento lento, um processo de incrustração de formas que, no limite, é uma metáfora da própria história da pintura.

Os títulos da exposição sobre a qual nos debruçamos e da sua série mais extensa – “After You” e “After After Turner”, respetivamente - fornecem algumas pistas para uma compreensão da relação da artista com essa história. Desde logo, porque aqui, After é uma designação ambígua que pode querer dizer “a partir de” ou “depois de”, aceções cujo significado não é incompatível e até se apresenta como complementar.

Joseph William Turner foi um exímio paisagista mas a evanescência das suas grandes telas ainda eivada de sensibilidade romântica e sublimidade, anuncia já uma circunstância em que o assunto e o género da pintura é claramente secundarizado em relação às potencialidades expressivas intrínsecas à sua linguagem. Ou seja, também nela o impulso representacional mora ainda, mas habitado por uma energia e uma vibração que são já do domínio do fluxo e do movimento.

O que Rita de Sá interioriza dessa distante aventura pictórica, não é, pois, a abordagem temática, os modos pictóricos românticos ou a sensibilidade estética particular do pintor inglês, nem sequer o seu muito específico sentido da luz. O que ela herda é essa capacidade de pintar como quem caminha num território em dissolução que tanto influenciou os modernistas, e que, no seu caso particular, se configura num campo de energia onde se sucedem agregações, tensões, hibridações, polarizações que já não encaixam na definição de paisagem entendida como um território emoldurado pelo olhar, mas que definem os pontos cardeais de uma superfície abstratamente experimentada.

As formas nos desenhos e pinturas de Rita produzem, com frequência, ângulos agudos, estruturados em traços largos de lápis de óleo numa rica modelação de timbres. Se tivermos muita vontade de ver coisas neles, podem assemelhar-se a meteoros numa velocidade cega, rumando de um vazio a outro, ou montanhas cujos cumes se cobrem de neve. É curioso como as entidades arquetípicas da montanha e do meteoro podem ser vistos como pólos dos movimentos contrários de ascensão e queda, de distanciação e aproximação, de confluência ou dispersão.

Em alguns casos, como na série “After You”, estas duas figuras sígnicas,que aqui nunca se deixam revelar completamente enquanto tal, encontram uma espécie de filigrana, uma débil mas elétrica pontuação a grafite que ora parece que cinge uma invasão, ora simplesmente afeiçoa um encontro entre a pintura (a mancha que invade) e o mais meticuloso e discreto alastramento do desenho (a linha que pontua). São jogos desequilibrados, assimétricos e pitorescos como a asa de Durer ou os céus repletos de nuances de Turner, mas situados num contexto bem mais íntimo, irregulares e errantes quanto baste para não os associarmos ao minimalismo, mas insistentes o suficiente para percebermos neles a persecução continuada de um mantra. No trabalho de Rita, eles assinalam, igualmente, um jogo nu e estrutural entre a pintura e o desenho que assim, mutuamente se friccionam e determinam. Finalmente, na série, de desenhos “Looking after you too” (2021), um elemento humano ou, pelo menos animal, se insinua nestes jogos polarizados. De uma forma completa, quase monumental, no grande desenho a grafite onde duas formas se aproximam de modo quase passional e, depois, nos pequenos desenhos rasgados que o acompanham como num estilhaçamento de planos que fizesse zooms parciais à cena, pressentimos uma dança tão nua e secreta como uma história de amor.

Na singularidade do seu dispositivo esta série ilumina a inteligibilidade de toda a exposição como se nos dissesse que o que a artista persegue é um modo de nos fazer ver por dentro das coisas, de surpreender o invisível no fugaz momento da sua aparição, seja isso uma paisagem, um corpo, ou o recorte fugidio de alguma coisa que ainda não sabemos nomear.

 

 

 Celso Martins, Critico de Arte